FUVEST: Resumo e análise da obra Terra Sonâmbula, de Mia Couto

Capa do livro publicada pela Companhia das Letras

Nunca o nosso mundo teve ao seu dispor tanta comunicação. E nunca foi tão dramática a nossa solidão.

Nunca houve tanta estrada. E nunca nos visitamos tão pouco.

(Mia Couto) 

Antes de começar a análise da obra, eu te convido a conhecer e apoiar o conteúdo criado para o blog, em especial para o Projeto Fuvest, através da minha campanha no APOIA.SE.

SOBRE O AUTOR

Antonio Emílio Leite Couto, conhecido como Mia Couto (seu pseudônimo advém de sua paixão por gatos), nasceu no dia 05 de julho de 1955, na cidade da Beira, província de Sofala em Moçambique. 

Aos catorze anos de idade, teve alguns poemas publicados no jornal “Notícias da Beira” e após três anos, foi morar na capital de Moçambique, Lourenço Marques (atual Maputo). 

Formado em Biologia e trabalhado como jornalista, o mesmo laborou no jornal Tribuna até à destruição das suas instalações em Setembro de 1975, por colonos que se opunham à independência. Foi nomeado diretor da Agência de Informação de Moçambique (AIM) e formou ligações de correspondentes entre as províncias moçambicanas durante o tempo da guerra de libertação. Trabalhou também na revista Tempo até 1981 e continuou a carreira no jornal Notícias até 1985. 

Como escritor, o autor possui mais de trinta livros publicados, sendo seu romance Terra Sonâmbula, objeto deste conteúdo, considerado um dos dozes melhores livros africanos do Século XX.

Mia Couto recebeu inúmeros prêmios, entre eles o Camões em 2013 e o Neustadt International Prize em 2014 e é membro correspondente da Academia Brasileira de Letras.

SOBRE A OBRA E ESTILO NARRATIVO

Terra Sonâmbula é o primeiro romance de Mia Couto, sendo publicado pela primeira vez em 1992. Aclamado pela crítica, no mesmo ano da publicação, o autor recebeu o Prêmio Nacional de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos.

Mia Couto faz de sua escrita uma espécie de poesia inovadora e consegue reescrever seu país de uma forma original. O autor também reinventa o português com combinações e formas de linguagem moçambicanos, usando as expressões e marcas linguísticas multiculturais presentes no imaginário de seu país, o que me lembrou muito o autor Guimarães Rosa.

A título de ilustração, cito algumas das palavras inventadas pelo autor: “sozinhidão”, “inutensílio”, “nuventanias”, entre outras. Tais invenções vocabulares não produzem apenas neologismos, mas um jogo de significados que convidam o leitor a perceber o caráter arte-fato da obra, apontando a língua como matéria. 

Insta salientar que o autor faz uso do insólito, como meio de representação do imaginário cultural popular. Através deste método, Mia Couto recria a língua portuguesa através dos mitos e histórias locais, visando a recuperação do sentido poético da vida que se esconde por trás dos anos de sofrimento em Moçambique. Logo, as produções literárias de Mia Couto transformam-se em escrita de resistência, ou seja, uma forma de sobrevivência em meio ao caos social instaurado no país.

Ademais, o autor traz em seus textos um conjunto de sentimentos através das tradições dilaceradas, a guerra, a fragmentação dos sonhos que revelam cenários de morte, tristeza, dor, sofrimento, miséria, fome, doença e o modo como os mortos governam e interferem no mundo.

CONTEXTO HISTÓRICO E CULTURAL

Devido aos problemas da guerra civil, o autor e outros escritores aderiram a uma poesia e prosa de tom engajado, como dito acima, de resistência. Dessa forma, os escritores iniciam um processo de reflexão sobre a nação e sua identidade, dialogando com a história pretérita e presente, buscando a recuperação dos valores tradicionais, assim como a relação dessa história com a modernidade.

Na obra, objeto deste resumo, o enredo circunscreve a nação moçambicana pós-independência (1964-1975 e guerra civil 1967-1992) e propõe uma crítica às identidades nacionais excludentes, bem como questiona as fronteiras culturais representadas entre o homem e a natureza; entre os vivos e os mortos; em um lugar sem fronteiras e sem limites. 

Assim, o autor passa a se preocupar mais com a estética literária e insere no contexto das narrativas, elementos que visam recuperar os sonhos que retratam a tradição e o passado moçambicano, imprimindo uma reflexão acerca da desintegração da paisagem e da identidade de Moçambique.

SOBRE O ENREDO

A obra apresenta dois planos narrativos dispostos em onze capítulos narrados em terceira e primeira pessoa, sendo estes respectivamente, Muidinga e Kindzu (através de seus cadernos). Ademais, nestes dois planos há a associação de tempos e lugares distintos.

No primeiro capítulo, nós conhecemos as seguintes personagens: Tuahir e Muidinga, um velho e uma criança, respectivamente, fugitivos do campo de deslocados e andarilhos por força da guerra que assolou o lar de ambos. 

Aqui, cito um trecho do livro, no qual nos é narrado o ambiente da estrada morta, título do primeiro capítulo e agora o lar das nossas personagens: 

Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca […]. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte. A estrada que agora se abre a nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma. Está mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda a distância

Durante a andança dos dois pela estrada morta, eles encontram um ônibus queimado, que servirá de guarida durante a noite. Perto do veículo, eles encontram um corpo baleado e com ele uma mala fechada e intacta. 

No interior da mala, há roupas, comida, papéis e cadernos. As capas destes cadernos servirão para acender uma fogueira à noite e seu conteúdo será uma história a ser contada pela nossa terceira personagem, Kindzu.

No primeiro caderno, Kindzu nos conta sobre a sua infância, a forma como seu pai Taímo, via pelos sonhos, o futuro através de mensagens dos antepassados, bem como o início da guerra em seu país:

O tempo passeava com mansas lentidões quando chegou a guerra. Meu pai dizia que era confusão vinda de fora, trazida por aqueles que tinham perdido seus privilégios. No princípio, só escutávamos as vagas novidades, acontecidas no longe. Depois, os tiroteios foram chegando mais perto e o sangue foi enchendo nossos medos. A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios da nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos.

Além do cenário acima, Kindzu também nos conta como a guerra interferiu diretamente na relação de sua família e as visões de seu pai se intensificaram, a ponto de informar a todos que seu filho mais novo Junhito (o nome verdadeiro é Vinticinco de Junho, dia da Independência de Moçambique) iria morrer, sendo necessária à sua mudança para o galinheiro da família, a fim de enganar a morte.

Todavia, de nada adiantou a estratégia traçada pelo pai de Kindzu, pois seu irmão desapareceu, como? Não se sabe, mas tal acontecimento foi um divisor de águas para o restante da família, principalmente, no comportamento de Taímo que cada vez mais se afogava na bebida até vir a falecer.

Com o passar do tempo, os demais irmãos de Kindzu se foram só restando ele, para o desgosto de sua mãe, que vai perdendo a sanidade mental. Ademais, a guerra crescia e tirava dali a maior parte dos habitantes, sobrando as casas de cimento vazias com paredes, cheias de buracos de balas e invadidas pelos bandos.

Contudo, ainda restava um amigo a Kindzu, o dono de um empório local, o indiano Surendra Valá e sua esposa Assma. O casal era visto como forasteiro e não era bem-vindo devido a sua etnia. Contudo, ao ter sua loja queimada, o mesmo foi embora, deixando nosso narrador devastado:

Eu agora estava órfão da família e da amizade. Sem família o que somos? Menos que poeira de um grão. Sem família, sem amigos: o que me restava fazer? Única saída era sozinhar-me, por minha conta, antes que me empurrassem para esse fogo que, lá fora, consumia tudo.

Vendo-se sozinho em um lugar que não via mais como seu lar, Kindzu, resolveu ouvir as palavras do adivinho de sua cidade e partir com a sua canoa (que tem o nome de seu pai, Taímo) para o mar.

Durante sua viagem, Kindzu sonhava com seu pai. Em todos os sonhos, ele tentava conversar com ele sobre a vontade de se entregar aos guerreiros blindados e acabar com a guerra (naparama), mas mesmo em sonho, o pai de Kindzu o ignorava e o comparava aos mortos, pois estes andavam com ossos desencontrados, com alma de uma outra pessoa.

Chegamos em uma passagem do livro (triste demais, por sinal), em que descobrimos como Tauahir e Muidinga acabaram juntos.  O velho conta para a criança, que ele estava no campo de deslocados, vindo de sua aldeia distante. Em uma noite lhe pediram para ajudar a enterrar seis crianças recém-falecidas.  Tuahir ajudou a arrastar os corpos para um buraco, quando reparou que os dedos de uma das crianças se cravaram no chão, lutando pela vida e contra o abismo. 

Ao verem que os demais coveiros continuariam a enterrar as crianças estando elas vivas ou mortas, Tuahir informou a todos que aquele menino era seu sobrinho. Ao se deparar com aquela criança em um estado lastimável e sem forças, o mesmo lhe prometeu que não iria abandoná-lo.

Com o tempo, o menino se recuperou e ganhou forças novamente, logo, Tuahir resolveu chamá-lo de Muidinga, o mesmo nome que tinha sido dado a seu filho mais velho, que faleceu nas minas do Rand.

Quanto à viagem (muito doida, por sinal) de Kindzu, o mesmo chegou a Matimati, lugar no qual foi orientado, por Assane – secretário do Administrador, a não ficar devido a violência. No retorno ao mar, um anão (Tchóti) que veio do céu caiu em seu barco, com o propósito de ser conduzido até um navio encalhado, a fim de resgatar comida, roupas e o que achasse. 

Neste navio, Kindzu conheceu Farida, filha do Céu , que possuía uma irmã gêmea, da qual foi separada no nascimento, tendo em vista, que em sua terra, ter filhos gêmeos era considerado maldição. Abusada por um homem português (Romão Pinto) e deste ato de violência, ela teve um menino. 

Em nenhum momento Farida notou alguma vontade de lhe dar cuidados. Foi à igreja e entregou a criança como se fosse uma encomenda de ninguém, um lapso da vida. Ficou lá, na Missão, nunca mais ela o viu.

Houve um tempo que tentou regressar atrás, recuperar esse menino. A Irmã Lucia, religiosa que morava na Missão,  falou sobre seu filho, Gaspar, uma criança que nunca em sua face foi visto rabisco de sorriso. Apenas de noite, enquanto dormia, o menino gargalhava. Eram risos que faziam gelar quem quer que escutasse. 

Tentou um encontro com seu filho, mas o menino fugiu da Missão não tendo mais nenhuma notícia de seu paradeiro. Logo, por essa criança, ela só chorava lágrimas de leite. 

Desde então ela queria cumprir um sonho antigo: sair dali, viajar para uma terra que ficasse longe de todos os lugares. Quando soube que um navio naufragara, ela se juntou ao grupo de pescadores que se dirigia para o lugar do acidente. Os pescadores saquearam o navio e a deixaram sozinha no mesmo. 

Quanto mais tempo conviviam juntos, Kindzu entendia o que o unia a Farida, os dois estavam divididos entre dois mundos. Kindzu retorna para Matimati e deixa Farida no navio, lhe prometendo que encontrará o seu filho Gaspar. 

Em sua estadia em Matimati, Kindzu reencontra Sarendra e sua esposa e testemunha a ação da milícia armada, a fome e a miséria que assolam aquele lugar. Também conhece a outra irmã de Farida, Carolinda que é esposa do administrador de Matimati – Estevão Lopes.

Kindzu conversa com Dona Virgínia (mãe de criação de Farida e esposa de Romão Pinto) e Tia Euzinha (tia biológia de Farida e Carolinda), mas não consegue desvendar o paradeiro de Gaspar.

Enquanto isso, Tuahir e Muidinga continuam na estrada. Nela, eles foram mantidos reféns por Siqueleto, mas acabam sendo liberados pelo mesmo, que morre de uma forma muito estranha (jorra sangue por sua orelha até ele se desfazer). Além de Siqueleto, nossas personagens encontram pela estrada Nhamataca, o fazedor de rios. 

Aqui ressalto que tanto a morte de Siqueleto, quanto a transformação de Nhamataca em rio  são metafóricas, no sentido de que tais elementos fantásticos invadem a realidade de Tuahir e Muidinga. 

Contudo,  Tuahir fica muito doente e eles resolvem construir uma canoa, a fim de percorrer o pântano até chegar ao mar, pois Tuahir sentia que estava morrendo. Ao chegar no mar, Muidinga coloca Tuahir em outra canoa, chamada Taímo, a maré vem a subir e Tuahir é entregue ao mar. 

Sozinho, Muidinga retorna ao ônibus e, neste momento, as narrativas se entrelaçam, pois é Kindzu que está no chão baleado ao lado da mala, e em seus últimos momentos de vida, ele vê Muidinga indo em sua direção para pegar seus pertences, dentre eles seus cadernos e pensa que enfim ele (Kindzu) encontrou o Gaspar.

POSSÍVEIS QUESTÕES DE VESTIBULAR

Como pode ser visto no item anterior, a história se passa em Moçambique, no período pós-independência, no qual, o país enfrentou mais de dezesseis anos de guerra civil entre 1976 e 1992, com a assinatura do Acordo Geral de Paz.

A guerra matou cerca de um milhão de pessoas e outros cinco milhões de civis foram deslocados e sofreram amputações por minas terrestres.

Como dito anteriormente, o autor me lembrou Guimarães Rosa com o uso de neologismo e a forma de contar a história pelo olhar de uma criança, assim como em Campo Geral. Logo, fique de olho em questões comparativas entre estas duas obras.

Ademais, há também a comparação com a obra Nove Noites de Bernardo de Carvalho, devido a construção narrativa, mistura entre presente e passado, intercalando as cartas do antropólogo e a visão do autor.

As questões que eu pude analisar versavam, em sua grande maioria, sobre o enredo da obra, sendo assim recomendo a leitura do livro e o meu resumo, por óbvio…kkkkk.

MINHA EXPERIÊNCIA DE LEITURA

É o meu primeiro contato com o autor e posso dizer que me surpreendi com uma leitura triste, principalmente na descrição do cenário em que as personagens viviam e o poder que a guerra possui em dizimar a nossa terra e até mesmo os nossos sonhos.

A narrativa baseou-se nas crenças e tradições dos povos de Moçambique, com uma mistura do passado e presente, bem como pela presença constante do sobrenatural que caminha lado a lado com o mundo real. 

No decorrer da leitura, nós podemos acompanhar a crescente esperança do autor quanto ao futuro, escrito ainda quando o país saía de duas grandes guerras: a primeira pela libertação do país dos laços coloniais que o prendiam a Portugal e a segunda por um violento confronto civil.

Nota-se, portanto, a constante busca das personagens por identidades possíveis, pela reconstrução de suas histórias, com mais dignidade, pela preservação das tradições e compreensão dos mistérios da própria existência.

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